sexta-feira, 3 de abril de 2009

Fragmentos de consciência

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Todo dia volto pra ver se esqueci o ferro na tomada. Não importa se eu tiver me certificado antes, é a certeza de que o fogo não danificará meu ponto de retorno. Não sei por que isso importa, nem porque aquela senhora ali sentada sempre pega o mesmo ônibus no mesmo horário. Parece rabugenta, mas ao sinal de algum conhecido abre um sorriso penoso que logo murcha em um olhar fulminante. Sobe apressada, decidida a não distrair um minuto da sua concentração em qualquer coisa que não o local pra onde vai.

Invejo a sua concentração; justamente ela me tem faltado um pouco nos últimos tempos. Na verdade, concentro em tudo o que possa parecer grande o suficiente, importante o suficiente. Estou cansado de captar olhares, absorver gestos, decifrar frases que logo são esmagados pelo trator das obrigações diárias. Sempre repito a mim mesmo que nada é maior do que as pessoas, como se sentem, como vivem, o que mudam. E isso é algo tão fácil de esquecer... Basta se colocar um objetivo fictício: fazer vistoria no carro, ir comer naquele lugar ali, escolher que filme vou assistir mais tarde.

Abro o caderno de cultura e me enojo. Tudo é falso, feito com o objetivo de causar em alguém a sensação de guia espiritual supremo, a cujos conselho e indicação todos devem se dobrar. Nem se mudar pra programação do cinema escapo: 90% do que está ali também é um produto, feito para causar sensações, mas raramente para instigar, para falar o que todo mundo pode ter esquecido de dizer. Cada vez mais odeio esquematismos. Acredito com sinceridade que toda obra honesta, independentemente do seu grau de complexidade, é capaz de comover e instigar em igual proporção. O difícil é achá-las sem ser exposto a tantas banalidades. O pior é quando o banal se disfarça de elegante e consegue enganar.

Lembro que outro dia assisti ao tão falado documentário "Santiago", do João Moreira Salles, sobre o culto mordomo de sua rica família. A frieza do diretor nos congela, assim como congela o protagonista. Não me engano, aquele filme foi feito para parecer um brilhante exercício metalingüístico. Mas brincadeiras com a gramática do cinema não me comovem desde que deixaram de ser novidade. De fato, também outro dia, peguei o final de "Juventude Transviada" na TV. Esse, aliás brilhantemente dirigido pelo Nicholas Ray, realmente me toca. O sacrifício final de Plato, que tanto admira (e, talvez, ama) James Dean, é tão bem integrado ao restante, que realmente sentimos o verdadeiro significado de solidão. E é das lágrimas da senhora negra falando ele não tinha ninguém que tiro as minhas também.

A cada dia que passa, me convenço mais e mais que as únicas questões realmente importantes são aquelas sócio-políticas, culturais, existenciais ou relativas ao amor. Qualquer outra, é um desdobramento, realmente importante ou não, de uma dessas. E de todas essas, o amor é o que mais me tem tocado nos últimos dias. Em todas as suas formas. Talvez seja por isso que a música é a expressão que menos me incomoda nesses últimos tempos. Muitos falam das frivolidades das canções pop de amor. Eu prefiro falar da genialidade das canções pop de amor. No meu celular, tocam agora Portishead (sempre a Beth Gibbons, seja solo ou em grupo), The Cure, Radiohead, Glasvegas, Morrissey, Animal Collective, Sonic Youth, Belle and Sebastian... Cada música de cada um deles fala de um aspecto do amor. De uma forma que sempre me traz algo de novo.

A PJ Harvey canta "I volunteer my soul for murder". E eu me encanto com tal forma de cantar, de escrever, de amar a ponto de colocar a música em loop. Existem ainda tantos mistérios a descobrir, tantas coisas pra mudar. E tudo pode começar numa noite, alguns bons amigos, uma garrafa. E quem sabe a música de pelo menos um deles vai ressoar com grande força em todos e convidar para um brinde à eterna transformação?

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Já que o assunto é amor, e considerando que eu felizmente abandonei qualquer senso de pieguice nesse post, tenho considerações a fazer a um amigo com quem conversava esta semana. Certas formas de amar são mais difíceis do que outras, por tudo que envolvem, todas as pressões e tudo o mais. Nessas situações, em que uma espiral de dúvidas e preocupações corroem, talvez a coisa mais importante seja retornar ao simples: você ama ou não ama aquela pessoa? Gosta ou não gosta? Você se pega pensando nela, de repente, no meio do dia, e isso parece muito mais importante do que o que você tá fazendo?

Se a resposta pra tudo isso for sim, então que tal priorizar o mais importante?! Se o relacionamento não estiver acontecendo, se a pessoa que você gosta não está do seu lado, aproveitando tudo o que pode, de que adiantam dúvidas ou preocupações? Do que adianta se preocupar? Se o sentimento mútuo existe e é forte, o natural é vivê-lo e não lutar contra ele. Estando juntos, todo o resto se resolve. :-)

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Em Busca de Juízo

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Dias desses, peguei no GNT reprise de um programa da Marília Gabriela em que a jornalista, apresentadora e atriz nas horas vagas entrevistava a cineasta Maria Augusta Ramos e a juíza Luciana Fiala. A primeira é diretora do ótimo documentário "Juízo" e a segunda é um dos juízes que que atuam no tribunal de Paracambi, no Rio de Janeiro, em que o registro documental é realizado. A ação filmada, em questão, é o julgamento de menores infratores, complementada por entrevista com as famílias ou visita aos locais onde moram, além de imagens aterradoras das celas dos reformatórios, em que adolescentes se amontoam em beliches sem nenhuma atividade intelectual ou cultural.

No documentário, Maria Augusta optou por não usar trilha sonora e, como não podia veicular as imagens dos menores, optou por substituí-los por não-atores que vivem em situações sócio-econômicas muito similares. Ao evitar ao máximo acrescentar tratamento estético às imagens e sons que registra, a cineasta ressalta a opressão do encarceramento e o choque com a realidade de guerra civil em que esses adolescentes estão inseridos. E também a postura forte, em momentos quase histérica da juíza Luciana, que foi, neste caso sim, a protagonista do trailer do filme.




Luciana profere opiniões e julgamentos sobre os réus, todos com a segurança de quem acredita veementemente nas leis brasileiras (no caso, o Estatuto da Criança e do Adolescente) e quer fazê-las valer. Quando perguntada por Marília Gabriela se a sua postura no tribunal não seria um tanto conservadora, Luciana repele: "ser conservador não é o ponto central da história, o ponto central é ser justo". O uso de palavras tão pesadas para qualquer significação frequentemente é o calcanhar de Aquiles de qualquer argumentação. Neste caso, Luciana as usa para tentar repelir aprofundar a questão. Quando Marília pergunta como é mandar adolescentes para reformatórios que não reformam, só pioram tudo, a juíza afirma que procura fazer a sua parte, que não poderia deixar de exercer o poder judiciário mesmo se tivesse dúvidas em relação ao legislativo.

Nesse ponto, três questões se abrem. A primeira, e mais óbvia, é a dos desempenhos de diferentes papéis; enquanto o juiz, baseado em leis, assume o papel de designador da última palavra sobre qualquer assunto sob o qual tenha jurisdição, o jornalista não profere julgamentos, apenas perguntas capazes de proporem novos enfoques sobre os acontecimentos. Nesse sentido, o filme documentário que se quer isento, observador imparcial de tudo (ainda que saibamos ser isto impossível) e a entrevista se complementam com perfeição.

O segundo - e mais grave - é um gravíssimo rompimento entre o Legislativo, o Judiciário e o Executivo. Tão grave quanto o rompimento de classes sociais de que Maria Augusta fala à apresentadora. Colocando de forma até simplista: o governo não cumpre com afinco e severidade as leis que o legislativo formula, o que abre brechas para que, além de todos os outros motivos culturais, psicológicos e sociais, esses adolescentes cometam infrações. Sobra ao judiciário punir tais infrações, sem que os infratores sejam efetivamente reabilitados pelo executivo (novamente ele!). O círculo vicioso se arrasta sem que haja um canal de comunicação oficial, efetivamente capaz de dar conta e entender os gargalos no processo. E isso é algo que o próprio capitalismo há centenas de anos nos ensina e que constitui um dos teoremas básicos do marketing: formulação - teste - feedback - reparo. Certamente, é uma discussão com muito pano pra manga, me sinto até um pouco verde demais pra falar disso.

Por último, a questão que nunca quis calar: quem vigia e pune quem vigia e pune? Se o próprio exercício das leis tem o seu grau de subjetivação, ou seja, está condicionado ao entendimento das condições que pedem ou não a aplicação delas, porque essa busca pelo entendimento é com frequência tão rasa e tacanha? Na cabeça de alguns, entender demais pode prejudicar a aplicação de leis, absolver os réus... Ou seria medo de que esse processo trouxesse alguma mudança?

De qualquer forma, admito que nunca fui muito afeiçoado ao direito: o pensamento cartesiano que é extraído dele pela opinião pública sempre me fez muito mal...

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Este ano não dei muita atenção pro Oscar, mas consegui assistir 4 dos 5 principais indicados. De dois deles já falei aqui (O Leitor e Benjamin Button). O único que não consegui assistir foi Frost/Nixon, mas como é do Ron Howard, um dos maiores cineastas-impostores de Hollywood da atualidade, não pretendo ligar muito. "Slumdog Millionaire" é talvez o mais refinado filme de Danny Boyle em termos estéticos. É cinema pop de boa qualidade, mas passa longe de ser um grande filme. E, claro, como já vi alguns dizendo por aí, bebe muito de Cidade de Deus mesmo.

O mesmo não dá para dizer de "Milk", a primeira cinebiografia da carreira de Van Sant. Ao optar por uma narrativa calcada no documental, o diretor não tenta penetrar na mente de cada um dos personagens do movimento gay em prol dos direitos humanos da década de 70, nem desvendar a personalidade de Harvey Milk, o político, o primeiro assumidamente gay a ser eleito nos EUA, que catalizou tudo isso. Ele, com a ajuda do roteirista premiado com o Oscar Dustin Lance Black, usa como base uma única gravação em fita de Harvey para contar a história de um personagem que se confundiu com a política do seu tempo.

E, principalmente, para fazer um filme abertamente panfletário, o que, de certa forma, perdoa a narrativa por demais esquemática; se a opção é pela popularização do filme, então o raciocínio seria correto. As propostas estéticas que Van Sant fez em filmes como Elefante, Last Days e Paranoid Park são pouco vistas aqui, com exceção de um ou outro plano-sequência dos personagens. Amparado por excelentes direção de fotografia e edição, o espaço ficou aberto para um estelar grupo de atores concederem brilhantes atuações, em especial Sean Penn, justamente premiado com o Oscar, e Josh Brolin. E tais atuações são de grande relevância: é talvez a primeira vez que um filme mainstream com personagens homossexuais pôde mostrar as vidas de casais, suas relações, refeições, demonstrações de afeto, longe de preconceitos e como ela efetivamente é - nada diferente da heterossexual.

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Numa operação parecida, a da figura pública e homem que se confundem, Darren Aronofsky fez o filme mais injustiçado deste ano nas premiações (junto com "Vicky Cristina Barcelona", do Woody Allen): "O Lutador". Contando com uma bela atuação de Mickey Rourke, até agora me impressiono com a classe e a elegância com que o diretor constrói a trajetória do lutador de luta livre cuja vida só recompensava dentro do ringue. Ao longo do filme, aos poucos, até a maravilhosa cena final entendemos que o personagem de Rourke era o mito que não conseguia ser homem comum.

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Ainda não comecei a assistir à nova temporada de 24 Horas, mas o telefilme que fizeram já me provou que tem tudo que sempre gostei na série: a embaixada americana na África é filha da puta, a atuação da ONU é omissa, empresários americanos armam generais e financiam golpes de Estado em país africano. hehehe Começou bem...

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Começou bem também o ano pra música. O Glasvegas fez um álbum com algumas poderosas canções, influenciadas por gente como My Bloody Valentine, Arcade Fire, Jesus and Mary Chain, U2 e até pelo obscuro Twilight Sad. É música para grandes estádios.

Quem fez, porém, um dos já prováveis 10 álbuns de 2009 foi o Animal Collective. Nunca dei muita bola pra esse coletivo, que já tem inúmeros álbuns na bagagem, mas este último, "Merriweather Post Pavilion", apesar não ser perfeito, é algo fora do comum! É inovador, ousado, instigante. Faz sobreposições de melodias e vozes que no início você não acredita que vão efetivamente conseguir. Se o Beach Boys fosse fazer o Pet Sounds do novo milênio, ele soaria mais ou menos assim:








domingo, 8 de fevereiro de 2009

Sobre injustiças e equívocos

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Pensando com calma outro dia me dei conta que 2008 foi um dos anos mais negros para o cinema. Em geral. Se fosse elaborar uma lista com os 10 filmes que mais gostei, certamente não conseguiria completar 10... E em tempos de longas pouco inspirados, a crítica (e principalmente o público, mas este é tema para outro momento) deveria, acima de tudo e ao menos em teoria, exercer uma pressão contrária, esclarecendo ao espectador a irrelevância de tantos filmes incapazes sequer de divertir.

Mas não. Esta mesma crítica, cada vez mais composta por entusiasmados espectadores de uma dúzia de filmes cults, se contenta em tirar observações fáceis e óbvias a respeito das histórias narradas pelos filmes, sem procurar, numa completa e arrogante ausência de auto-crítica, se questionar se o óbvio, o que está ali na tela, não esconde camadas de significado e jogos que vão além do que está explícito.

Provas recentes disso são as desastrosas críticas feitas aos filmes "O Leitor" (geralmente, mal aceito) e "O Curioso Caso de Benjamin Button" (de aceitação ampla). "O Leitor" carrega consigo um peso anti-popular muito forte: dizem que foi o filme que eliminou o superhipermegaestimado "O Cavaleiro das Trevas" do Oscar deste ano. Li crítica, inclusive, que comparava (!) os dois filmes. Se isto realmente procede ou não, não importa em absoluto. O fato é que a adaptação do diretor Stephen Daldry (Billy Elliot, As Horas), um dos mais injustiçados cineastas da atualidade pela crítica, para o romance do alemão Bernhard Schlink é uma grande obra do cinema clássico! E retoma, numa análise talvez por demais precoce da sua obra, um universo temático que explorara com o sublime "As Horas": a narrativa como forma de estabelecer um fio existencial, de conferir sentido a acontecimentos, ações ou sentimentos confusos ou inexplicáveis.



Essa é a última tentativa de redenção do personagem-narrador do livro, que Daldry modifica e coloca de forma sutil no filme, evitando as armadilhas fáceis da narração em off. A narrativa em questão, ambientada na Alemanha Ocidental da década de 50, conta a história de Michael Berg, um adolescente de 15 anos de idade que é socorrido por uma mulher de meia idade (Hannah) quando passa mal no meio da rua em decorrência de hepatite. Ao retornar para agradecê-la, surge entre os dois um relacionamento íntimo e forte, que é interrompido pelo sumiço inesperado dela. Anos mais tarde, enquanto cursa a faculdade de Direito, Michael reencontra Hannah e descobre fatos inimagináveis sobre o passado dela. O nome "O Leitor" se deve ao fato de que toda vez antes de irem para cama, Hannah pede a Michael que leia a ela. E ele escolhe em sua maioria romances, de D.H. Lawrence, Tolstói, Homero em leituras que Hannah acompanha com grande interesse e que permitem a Michael perder, aos poucos, a sua timidez.


A opção por uma narrativa um pouco menos centrada no eu-personagem permite a Daldry usar na construção do filme um dos preceitos básicos do cinema clássico: o deslocamento de corpos pelo tempo e pelo espaço. Dessa forma ampara a primeira parte da história nos corpos frequentemente nus ou seminus de David Kross e Kate Winslet, ambos excelentes como Michael e Hannah. É nessa interação que ele também estabelece a relação de poder do feminino bruto de Hannah sobre o masculino vulnerável de Michael; o personagem masculino protagoniza cenas de nudez mais enfáticas do que a feminina e frequentemente está dominado por ela, seja quando Hannah lhe dá banho ou quando lhe explora a sexualidade. No primeiro contato entre os dois, inclusive, Daldry sabiamente elimina a trilha sonora sempre muito presente em seus filmes, e amplifica os efeitos sonoros, criando uma opressão de elementos banais diante de uma situação climática para os protagonistas.



Esta interação de corpos permite que se evidencie, mais tarde, a incapacidade de Michael de se aproximar afetivamente de outras mulheres e, inclusive, de estabelecer qualquer contato corporal com Hannah no reencontro de ambos. Daldry reconhece que a determinação de um encontro de corpos ou não está contida no tempo e no espaço, sendo difícil que aconteça de forma igual ou repetida por seres que estão em constante mudança. O Michael que reencontra Hannah em 2 momentos posteriores é completamente diferente daquele que a amou: seu sentimento ficou preso no passado, não-consumado em sua totalidade, reprimido pela ausência súbita e inexplicável do ser amado e perdido no mistério do próprio desaparecimento, em um primeiro momento. E em um segundo momento, destroçado pela culpa de não agir a favor dela e pelo passado do qual não consegue extrair sentido.

O amor localizado no espaço-tempo narrado por Schlink fazia com que Hannah sempre se referisse a Michael, no original em alemão, como "jüngchen", que seria algo como "garotinho" em português. A língua inglesa desfaz o encanto ao usar a palavra "kid". Independentemente disso, o uso de qualquer desses termos indica que Hannah identifica Michael como uma imagem do passado. A própria negação do passado por Hannah permitiu que os dois se relacionassem. Enquanto esse passado retorna, porém, o presente é impossível, é perdido. A menos que o que passou seja decifrado.


E é exatamente este o contexto da relação entre os dois: uma Alemanha em ressaca do pós-guerra, em que os jovens julgam os "criminosos" nazistas, para promover da memória coletiva um impossível apagão do que aconteceu, para esquecer que os próprios pais foram testemunhas do horror sem nada fazer contra isso. Para conferir sentido e poder continuar escrevendo a história (no formato tão equivocadamente difundido de progresso) através da causa e da conseqüência, neste caso representadas pelo crime e a punição.


Alguns críticos afirmaram que é por demais rasa a discussão de crimes de guerra que o filme evoca. Esta, porém, é uma escolha extremamente acurada do diretor: a questão central não é crimes de guerra ou a ressaca moral do holocausto. A discussão pública, inclusive em tribunais, de temas polêmicos não é sempre superficial de qualquer jeito?! O ponto de "O Leitor" é que o ruim acontece por escolhas individuais, pautadas mais na ignorância do que na maldade, e que muitas vezes o fio narrativo que tentamos tecer para entender e julgar nos leva a escolhas equivocadas. Ou o mais próximo possível da redenção. Como arrisca descobrir o protagonista que primeiro narra os livros para no final narrar a sua própria vida.


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O mesmo cuidado com a significação, por outro lado, não é visto em nenhum dos longuíssimos 165 minutos de duração de "O Curioso Caso de Benjamin Button". Visualmente impressionante, o filme não consegue, porém, criar uma imagem sequer que fuja ao óbvio ou que conquiste o espectador, que fique com ele. O diretor David Fincher que havia feito com Zodíaco o seu melhor filme parece ter retrocedido e escolhido fazer cinema didático para público com idade mental de uma criança de 7 anos de idade.

A preocupação de Fincher com os deslocamentos de corpos no tempo-espaço deveria ter sido imensa para uma história que quer narrar o amor entre um homem que desenvelhece e uma mulher que envelhece. Mas isso não transparece em nenhum momento do filme. A ponto da renúncia do personagem de Brad Pitt, que quando perde a maquiagem e rejuvenesce atua mal, ao amor de personagem de Cate Blanchett parecer tola e artificial. Junta-se a isso uma narrativa em off baseada numa New Orleans momentos antes do furacão Katrina atacar. O porquê disso o filme jamais se preocupa em identificar. Um editor mais ousado poderia, inclusive, ter cortado tudo isso do filme que não faria falta.

O filme se perde em excessivo em fragmentos de história tentando evocar truques que "Forrest Gump" já tinha usado de forma bem mais eficaz. Lá pelo meio do filme, inclusive, Fincher é acometido por um surto de Amelie Poulain que nos faz sentir vergonha por ele. E o que dizer de um filme em que a narração em off não corresponde de forma alguma às imagens mostradas e, pior, passa melhor a mensagem do que elas próprias?

Falar que Benjamin Button traz uma profunda reflexão sobre vida e morte é uma das maiores besteiras que já ouvi na vida! O que existe é puramente uma excelente idéia do conto de F. Scott Fitzgerald desperdiçada em anedotas vazias. Será que os membros da academia são acometidos periodicamente por um mal súbito que os faz considerar porcarias como Benjamin Button ou Crash dignas de indicações nas categorias principais do Oscar? Sei não...




domingo, 11 de maio de 2008

O Médio

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Prometi a mim mesmo que não dedicaria muitas linhas por aqui em relação à música, assunto que já me ocupa 7 dias por semana. Mas, realmente, não dá pra evitar quando tantas mentiras tomam conta do noticiário e são exaustivamente repetidas no piloto automático.
São exatamente 18:38. Na tv a cabo aqui de casa existem basicamente 4 canais relacionados à música: MTV, MTV Hits, VH1 e Multishow (TVZ). No primeiro, passa algum programa sem graça; afinal pra que música no canal que nasceu pra isso?! No segundo um clipe de Hip Hop. O artista nem sei quem é, preciso esperar até o final do clipe. Mas perco a paciência e mudo pro Multishow. Novamente Hip Hop. Só que desta vez, consigo ao menos saber que é do Akon. Preferia Kanye West ou Lupe Fiasco; conseguem ao menos prender a minha atenção. Mudo pro único que falta: VH1. Rola uma playlist dominada por clipes cafonas da década de 80 sobre o tema casamento. Quem ouve Antena 1 e JB FM aqui no Rio se deliciaria.
Penso em desligar a TV, já que algumas perguntas ficam na minha cabeça:

1) Em que momento mesmo esse tal "Hip Hop" dominou o pop do Brasil e dos EUA?

2) Em que momento passaram a chamar de Hip Hop, um gênero que surgiu nos anos 70 em Nova Iorque repleto de crítica social e que nos deu tantos spin offs maravilhosos como a break dance e principalmente o grafite, se tornou um inventário de fascistas machistas (até trava a língua!) e de exaltação ao consumismo e ao vazio?

3) Desde quando as emissoras e as rádios assumiram que todo mundo gosta disso e que devem, portanto, dedicar grande parcela da programação ao gênero?


Esta última pergunta, aliás, é a mais fácil de responder. Ouvi da boca do diretor de programação de uma das maiores redes de rádios pop do Brasil: "Às vezes acho que o público emburreceu".
Culpa do público... Sei...

Fato é que existe, sempre existiu e sempre vai existir uma parcela muito grande desse "público" que pauta o gosto musical pelo que está tocando no momento. É importante estar atualizado nas músicas, porque assim dá pra ser "in", confratenizar com os outros ou, quem sabe, até poder dizer: "Não conhece?! Peraí que vou gravar procê!". É o que o indie adora fazer, em maior escala. E, claro, quando a música toca na boate, dá pra saber de quem é e continuar dançando da mesma forma que dançava a anterior. Afinal, nesse "hip hop" atual, basta balançar o corpo levemente no ritmo que você dança o playlist da noite inteira.

O grande público, principalmente diante de tantas ferramentas, sites e acessos internéticos, que em teoria deveriam provocar o efeito inverso, o da diferenciação, da busca pelo novo, pode até ter emburrecido. Mas acho que não é por aí; a explicação é muito mais simples e não envolve público: o mercado da música se afunda na mediocridade. E nem estou falando das gravadoras. O assunto é mesmo com os meios: jornais e revistas, TV e, principalmente, rádio.
Segundo a lei da acomodação, por que investir em uma rádio rock (hoje absolutamente inexistente no Rio de Janeiro e em São Paulo), se uma rádio composta de pop e hip hop pode dar muito mais audiência e, conseqüentemente, dinheiro? Nesse contexto, seria, inclusive, espantoso existir uma rádio inteiramente dedicada à MPB (ou, na verdade, a uma parcela dela de fato) no Rio. Mas a surpresa se desfaz ao lembrarmos que consultórios médicos e elevadores precisam de alguma trilha sonora.

O médio domina a programação e os programadores. Mas estes se esquecem de um dado fundamental: o mediano, o que todo mundo aceita escutar ou ver porque não tem tempo ou não se preocupa em procurar outras coisas, muda sempre! Nos anos 80 e início dos 90, ele era dominado pelo rock, pelo pop romântico e pelo sertanejo. Na metade da década de 90, o pagode popular, o axé e o dance pop ganharam força. Hoje nem precisamos falar.

A parada de sucessos é cíclica. E quem ousa sai na frente para definir o comportamento de todo um grupo de jovens e adolescentes por vir. Como Newton nos lembrava com a física, existe ação e reação. Até a reação ser incorporada pelo mainstream e virar ação. Enquanto isso, não nos esqueçamos da internet, nossa maior aliada para descobrir coisas novas, de qualquer gênero musical, em qualquer registro.

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Pra não dizerem que estou ranzinza, vai uma recomendação com muitos elogios. Ainda está em cartaz em alguns pouquíssimos locais no Brasil uma maravilha do cinema mexicano intitulada "Zona do Crime", ou "La Zona", no original, vencedor do Leão de Ouro de Melhor Filme de Estréia no Festival de Veneza de 2007. Ao lado de uma favela, na Cidade do México, existe um condomínio de alto luxo, cercado por altíssimos muros, intitulado "La Zona". Durante uma tempestade, um outdoor cai, quebrando parte de um muro e cortando a energia do condomínio. Dois homens e um adolescente da favela passam para outro lado para roubar alguns pertences. Mas a forte segurança do local age e mata os dois, sem conseguir evitar, porém, que um deles mate uma senhora. O adolescente, por sua vez, fica preso no condomínio.

É aí que entendemos o que realmente está por trás desse cercadinho de luxo: um grupo de pessoas assustadas e que são capazes de tudo, tudo mesmo, para manterem seu padrão de vida. Quase como os vizinhos do apartamento da protagonista de "O Bebê de Rosemary". As decisões são tomadas em conselho, como em qualquer cidade sinistra de filme de terror, a polícia precisa de mandado judicial para entrar no local, a liberdade de agir e punir com as próprias mãos é plena.



E a forma como o diretor Rodrigo Plá articula os diferentes protagonistas (os adolescentes do local, os homens, as mulheres quase sempre donas de casa, a mãe do adolescente perdido que o procura, a namorada dele, o policial violento que quer desmascarar a corrupção no condomínio) é absolutamente brilhante! A caça dos "adultos" ao adolescente escondido, o quanto os filhoes deles emulam ou repelem o comportamento deles, a amizade de um deles com o foragido, os mecanismos corruptos da polícia. Tudo isso, envolto em belíssimas atuações, faz de "Zona do Crime" um filme absolutamente contundente, tanto em forma, no seu misto de suspense com tragédia, quanto em conteúdo.

Assusta ainda mais quando percebemos que uma história a princípio tão complexa é tão impressionantemente real e atual.

Tá logo ali na esquina.
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"Skins" acabou mês passado. E como acabou bem... Vai ser difícil uma série direcionada ao público adolescente alcançar o altíssimo nível que ela estabeleceu. Dizem que já estão produzindo versões da série na Espanha e nos EUA. Era de se esperar.

quinta-feira, 13 de março de 2008

Corpos de Teflon



Qualquer tia, vó, mãe ou mero purista tem sempre a mesma coisa a dizer a respeito da TV (sim, essa entidade homogênea que o próprio uso do termo indica): hoje em dia, só tem baixaria. Mas é uma baixaria da qual poucos conseguem remover o olhar. Fascina àqueles que ali procuram mais do que realmente existe: corpos assépticos se chocando, pudores mascarados em ousadia e sensual preterido pelo pseudo-explícito.

O sexo só aparece um pouco mais sério quando velhinhas ou terapeutas conseguem programas na TV paga. Mais do que falar do estado das coisas, porém, é mais interessante recorrer a duas produções que vi recentemente e que (justiça existe!) fogem a esta regra. O primeiro é o último filme de John Cameron Mitchell, o cara por trás do divertido "Hedwig and the Angry Inch", filme sobre um rockstar travesti, que, bem, perdeu um bom pedaço do pênis e ficou apenas com um "angry inch". "Shortbus", o tal último filme, é de 2006 e já passou por alguns festivais no Brasil. Não é de se espantar que não tenha saído até agora em circuito comercial ou DVD.




O filme se divide em duas histórias principais, ainda que existam outras satélites: uma psicóloga conjugal que jamais teve um orgasmo (talvez a mais interessante) e um casal homossexual tratado por ela que permaneceu 5 anos fiel e que deseja incluir um terceiro elemento na relação. E um dos personagens principais é um clube chamado "Shortbus", em que o sexo é livre, possível com qualquer um e de qualquer forma. Quem se chocou com o sexo oral do excelente "Brown Bunny", provavelmente vai ter mais problemas com esse. As cenas de sexo são todas explícitas, a interação entre os atores, todos amadores e recrutados via MySpace, real.

Em que medida, então, se diferencia de um filme pornô? Fácil: o explícito não evoca o voyeur, mas questiona o porquê de se esconder o sexo, quando o tema principal envolve justamente as diversas formas de se lidar com ele. É como filme policial sem assassinato ou de terror sem o elemento aterrorizante. Não é particularmente um grande filme no sentido técnico. Porém, "Shortbus" não se recusa a mostrar aquilo de que fala. E culmina com uma orgia mais focada em celebrar do que em chocar. Como a que Fellini faria em alguns filmes ("Satyricon", "Oito e Meio", "A Doce Vida") se o pudor da época e a sua vontade artística permitissem.


Nem tão ousado, porém igualmente iconoclasta (para os padrões televisivos) é a série inglesa "Skins". Primeiramente, porque coloca atores adolescentes na mesma idade dos personagens e não caras e mulheres de 26 anos pra fazer garotos e garotas. Sorry, nem toda a maquiagem do mundo me faz engolir tamanha artificialidade. E segundo porque , ao contrário das sitcoms americanas, em que qualquer personagem quase sempre está de calça comprida, tênis e camisa, mesmo que esteja deitado na cama, tem uma relação nem um pouco hipócrita com o corpo desses adolescentes:





Os garotos aparecem sempre sem camisa, de cueca ou até mesmo nus. Mais até do que as próprias garotas (ainda que elas tenham o seu "share" de liberdade), ao contrário do que uma sociedade machista como a nossa sacramentou. Não existe um personagem principal propriamente dito, cada capítulo é centrado num deles. Começa com Tony (interpretado pelo menino de "Um Grande Garoto", lembram?!), um adolescente perspicaz, inteligente e ambíguo em suas pretensões que, quase como um personagem shakespiriano ou de Oscar Wilde, gosta de criar intrigas e de armar situações. Ele namora a bela Michelle, que é a garota dos olhos do melhor amigo de Tony, o atrapalhado (e tímido para relacionamentos) Sid. Completam o grupo Anwar, de família muçulmana, o seu melhor amigo (gay) Maxxie, a responsável Jal, o "louco" Chris (que experimenta qualquer droga ou situação) e a bulímica Cassie.


Naturalmente, como toda série focada em adolescentes, Skins tenta dar conta de quase todas as aflições que os atingem. E quase sempre é bem-sucedida na empreitada, uma vez que foge do clichê e do moralismo. Numa série de TV, nunca a amizade entre dois adolescentes (Tony e Sid) foi tão bem retratada, nunca um personagem adolescente homossexual (Maxxie) verossímil ganhou tanto destaque, nunca o abandono e a solidão (Cassie e Chris) foram tão evidentes. E, principalmente, um dos pontos mais importantes da adolescência, a vida sexual, foi enfatizado como deveria.

Nenhuma outra série que eu conheça teria coragem de fazer esta cena com um personagem principal que deseja experimentar:




Ou ousaria abordar uma relação professora-aluno sem receios. Ou arriscaria, nos dias de hoje, falar de um garoto virgem com medos. Ou do uso de drogas como escapismo. Ou da idéia de suicídio na adolescência. Ou da amizade masculina sem tolos receios de que pareça gay (e não é!). Enfim, tudo isso se desenrola na tela, com uma trilha sonora matadora (The Gossip, Decemberists, Foals, Belle and Sebastian, Bloc Party, Yeah Yeah Yeahs e até um improvável Cat Stevens), e nuances que alternam a comédia (existem cenas hilárias!) e o drama sem a mão pesada e o moralismo travestido de denúncia de um "Kids", ícone adolescente mais do que ultrapassado.

Sinal dos tempos? Tomara. Já tava ficando entediado.


quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Ah, as listas...


Tinha me prometido que ia parar um pouco de falar de cinema e que ia logo mudar de assunto. Mas a droga do hábito me fez retornar ao mesmo tema... Então, rola o Oscar nesse fim de semana. Mas as pessoas não parecem tão cientes disso. Por que?! Não sei bem... Sei de uma coisa, porém: nos últimos anos, os indicados/vencedores têm sido de muito melhor qualidade. Nos anos 90, arrisco dizer, o Oscar viveu seus anos negros. Durante esse período, ganhavam Oscars filmes que, nas CNTP, seriam apenas bons, legais e nada além: "Forrest Gump" (1994), o fraco "Coração Valente" (1995), "O Paciente Inglês" (1996), "Titanic" (1997) e "Shakespeare Apaixonado" (1998).



No final da década de 90, o Oscar ensaiou uma virada com "Beleza Americana". Mas aí engolimos, em seguida, "Gladiador" (2000) e "Uma Mente Brilhante" (2001), em um ano em que concorria uma obra-prima ("Senhor dos Anéis - A Sociedade do Anel"). Depois, melhorou muito, tanto pelos indicados quanto pelos vencedores: "As Horas", "Encontros e Desecontros" (ou "Lost in Translation"), "Sobre Meninos e Lobos", "Brokeback Mountain", "Boa Noite e Boa Sorte", "Munique", "Cartas de Iwo Jima" e "Os Infiltrados" são todos Grandes filmes, com o "g" maiúsculo mesmo. Teve, é claro, um belo escorregão, quando em 2005 premiou o péssimo "Crash - No Limite", que nem ser indicado merecia.

E esse ano, a disputa traz 5 grandes filmes. Talvez, mais do que nos últimos 20 anos, o Oscar esteja disputado integralmente por concorrentes de peso; "Onde os Fracos Não Têm Vez" e "Sangue Negro" são pequenas obras-primas e "Juno", "Conduta de Risco" e "Desejo e Reparação" são, no mínimo, ótimos. E ainda tem o excelente "Sweeney Todd", que ficou de fora. É muito provável que o filme dos Irmãos Coen seja o grande vencedor da noite. "Desejo e Reparação" e "Sangue Negro" têm chances, mas parecem um pouco menores. Os outros têm a própria indicação como prêmio. Um ponto interessante é a constante politização do prêmio. Este ano, todos os indicados tocam em alguma questão política enraizada na sociedade americana: a riqueza e o petróleo ("Sangue Negro"), a corrupção ("Conduta de Risco"), a gravidez adolescente e o aborto ("Juno"), a mentira e a ignorância ("Desejo e Reparação") e o medo e a violência ("Onde os Fracos Não Têm Vez").

Já que todo mundo pode fazer lista, vou escolher os meus favoritos de 2007 (que tenham sido lançados, no Brasil ou nos EUA, comercialmente), sem ordem de preferência:

Ratatouille - O diretor Brad Bird, o gênio por trás de "O Gigante de Ferro" e "Os Incríveis", criou uma nova obra-prima para a Pixar. A saga do ratinho cozinheiro vai além da busca do sucesso e da realização, é muito melhor do que isso: trata genuinamente da alma humana, das memórias e do afeto que estão ligados à culinária.

O Hospedeiro - Fazia tempo que eu tinha deixado de acreditar que um filme de monstro podia me surpreender. Até surgir essa produção coreana não menos do que genial! Poucos filmes, hoje, conseguem nos surpreender tanto quanto este.

Zodíaco - O melhor filme que David Fincher fez até hoje é um brilhante estudo das reações humanas diante do mistério. Faz lembrar alguns dos maiores clássicos do cinema policial americano. A grande vantagem é que é, ao mesmo tempo, atemporal em sua narrativa.

Império dos Sonhos - A sensação é que este é o filme que David Lynch sempre quis fazer. Quem viu o final da série "Twin Peaks" pode logo imaginar aquele delírio durando 3 horas. É uma experiência audiovisual que extrapola as barreiras do cinema e jamais deixa o espectador indiferente.

Rocky Balboa - Sim, o do Stallone! Até hoje só tinha visto o primeiro, que sempre achei bom. Não vi os outros, que sempre me pareceram caça-níqueis. Mas resolvi dar uma chance a esse. E como fiquei feliz! É um belíssimo filme sobre a existência humana diante daquilo que amamos (família, amigos, profissão), um réquiem necessário.

Paranoid Park - É, junto com "Elefante", a obra máxima de Gus Van Sant e isso não é pouco. Aqui, ele atingiu o ápice da sua maturidade e domínio como cineasta. O resultado é um deleite para os olhos.

Onde os Fracos Não Têm Vez - Os Irmãos Coen fizeram um clássico no momento em que editaram a última cena deste filme. Tem tantas qualidades, que dava para ficar linhas e mais linhas descrevendo, mas isso já fiz no último post.

Sangue Negro - Para quem já tinha se acostumado com o estilo de Paul Thomas Anderson, a surpresa foi boa: é diferente e, ao mesmo tempo, traz todas as qualidades dos seus filmes anteriores. É uma pequena e peculiar obra-prima, ampliada por brilhantes trabalhos de fotografia, trilha sonora (do multi-instrumentista Jonny Greenwood, do Radiohead) e atuação, em especial de Daniel Day-Lewis.

Sweeney Todd - Talvez seja este também o filme que Tim Burton sempre quis fazer. Negro até o último fio de cabelo, os risos vêm mais pelo incômodo que gera na platéia do que por situações explicitamente engraçadas.

E os meus 2 leitores, do que gostaram mais?! Aliás, percebi que nem 10 filmes tenho... Tudo bem, infelizmente não vi muuuuiiiitos filmes ano passado, em especial muitos brasileiros que queria demais ter visto e que com certeza teriam lugar nessa lista. Locadora existe para tirar esses atrasos.

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

A Morte do Herói ou A Reinvenção do Faroeste


E não é com animação que proclamo isso, vai. O que seria da minha infância sem X-Men, Cavaleiros do Zodíaco, Jaspion, Changeman, Jiraya e tantos outros?! Ou de gêneros clássicos do cinema como a aventura ou o faroeste? Fato é que os Irmãos Coen e o escritor Cormac MacCarthy não tomam conhecimento disso. "Onde os Fracos Não Têm Vez" (ou, melhor, "No Country for Old Men", no original) mistura suspense, drama, um pouco de terror e faroeste, clássico refúgio de heróis, para contar a história de um homem que, após se apoderar de uma mala repleta de dinheiro, passa a ser perseguido por um assassino implacável de nome esquisito (Anton Chigurh, muito bem interpretado por Javier Bardem) que deixa um rastro de mortes investigado pelo detetive interpretado por Tommy Lee Jones.

Pode parecer estranho, mas talvez seja Chigurh o verdadeiro protagonista do filme. Sua crueldade transcende a de qualquer vilão que tenhamos em memória imediata. Mata por matar, sem critério. Algumas vezes, "brinca" com a vida de sua vítima, jogando cara e coroa para decidí-la. E, por incrível que pareça, respeita o resultado, ainda que este seja a vida. Sua arma é metaforicamente peculiar: um rifle de ar comprimido absolutamente silencioso, que, por vezes, sequer atira balas. Chigurh é, antes de tudo, a personificação do medo e do terror. Para o cowboy que se apodera do dinheiro e precisa fugir ao mesmo tempo em que protege a sua esposa, ele é a punição, o terror. Para o xerife que o persegue, ele é um fantasma, a morte.


Nenhum dos dois, porém, parece querer enfrentá-lo, encará-lo de frente. A menos que seja necessário. No faroeste dos irmãos Coen, o confronto foi substituído pelo terror. E, tal qual Ang Lee havia feito com o seu "Brokeback Mountain", um gênero é reinventado. Afinal, a Brokeback Mountain era um refúgio do medo, da incompreensão e do terror do meio, tão marcantemente representado na lembrança de um incidente na infância do personagem de Heath Ledger. É curioso o quanto o faroeste, gênero clássico do embate do americano com o outro invasor (seja este o cowboy ou o índio) ou dele com a lei, tenha sofrido uma mudança profunda e se tornado tão atual e moderno. Ao menos no conteúdo, já que formalmente, esses diretores fazem cinema clássico da maior qualidade. A mensagem é sutil: o problema não é o outro, mas o medo dele, o terror, que está no seio da própria sociedade americana.

Só que dessa vez, o tal filme subversivo deve abocanhar alguns Oscar, já que personagens do mesmo sexo só brigam entre si... O mérito, porém, por esta obra-prima, talvez o maior filme que os irmãos Coen tenham feito até hoje (e, olha, que outra adaptação literária, "E aí meu Irmão, Cadê Você?" briga por esse posto), não é apenas do diretor. Não cheguei a ler o livro de Cormac MacCarthy, porém, por ler "A Estrada", seu livro seguinte, vencedor do Pulitzer no ano passado, é possível identificar pontos em comum. As histórias de MacCarthy são negras, tem um forte tom pessimista. A morte é algo que se move contra os personagens e tudo o que eles têm que fazer é se manterem vivos. Há, porém, uma força muito forte que os faz sobreviver. E é tão simples, quanto cafona, alguns devem achar (eu não!): amor.



Amor à vida do personagem de Tommy Lee Jones, uma vez que é cada vez mais fraca sua crença em um Deus e cada vez maior o seu medo do vazio da morte (e de um resto vazio de existência). Amor da esposa em relação ao marido perseguido (e, de certa forma, dele a ela). O amor do pai pelo filho e vice-versa em "A Estrada", mas disso já falo. O personagem de Javier Bardem jamais é humanizado, até o final. Ao confrontar a esposa do fugitivo, ela o lembra de que as escolhas são dele, se ele mata ou não, a culpa é dele, e não de uma força oculta do universo que opera através dele. Xeque-mate.


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São essas mesmas escolhas, diante de forças aparentemente maiores, que pautam "A Estrada", brilhante romance do mesmo escritor de "Onde os Velhos Não Têm Vez". Usando um estilo que mistura poesia e economia extrema na narrativa, criando um estilo único, MacCarthy retrata um pai e seu filho que vagam por um EUA desolado, destruído por algo que jamais sabemos. As cidades estão em chamas, os corpos estão por toda a parte, o céu está coberto de cinzas, a comida é escassa e hordas de saqueadores espalham o terror. Os dois se mantém vivos, caminhando em direção ao oceano, sem saber por que, graças ao amor que sentem um pelo outro. E precisam, entre outras coisas, superar a dificuldade de confiar em outros, coisa que o filho, capaz de enxergar caminhos por um mundo árido e destruído para o amor, incentiva e o pai, machucado por tudo, evita.

O livro, além de receber o prêmio máximo da literatura americana, foi escolhido por Oprah Winfrey, sim a apresentadora de TV número 1 dos EUA, para o seu Book Club, do qual milhares de americanos fazem parte. É uma escolha ousada e, ao mesmo tempo, muito oportuna: ainda que seja literatura do mais alto nível, é um livro acessível. Ah, quem me dera que aqui uma Ana Maria Braga tivesse um clube do livro também... A ignorância por essas terras, seria bem mais rara... A Ofélia (lembram dela?!) bem que tentou. Só que seus livros só traziam receitas e o tempo de leitura era gasto na cozinha... Ainda que a comida ficasse boa. Muito boa.

"A Estrada" já está sendo adaptado para o cinema (e eu acho um livro muuuuiiiito difícil de adaptar, mas vejamos o que será feito) e vai trazer Aragorn (Viggo Mortensen) no papel do pai e o desconhecido Kodi Smit-McPhee (que já ganhou até prêmio de jovem ator do Institudo de Cinema Australiano) no do filho. A direção é de John Hillcoat, que tem no currículo clipes de bandas como Nick Cave & the Bad Seeds, Siouxsie & the Banshees, Manic Street Preachers, Bush, Placebo, Suede, Depeche Mode, Muse, entre outros. Tá, os clipes são bons. Mas acho que o filme pediria o oposto disso... Enfim, vamos conferir e ver no que dá.